O mundo dos jogos de azar tornou-se um alvo para a lavagem de dinheiro por parte de criminosos. Este setor oferece várias maneiras de facilitar esse tipo de crime. Hoje em dia, as casas lotéricas funcionam praticamente como bancos, oferecendo serviços como saques, depósitos, pagamento de contas e recargas de celular. Sendo assim, são suscetíveis à lavagem de dinheiro como uma instituição financeira. O bilhete de loteria, que é o carro-chefe das lotéricas, também pode ser utilizado no submundo da criminalidade.
Pense numa pessoa ganhar duas vezes na loteria. Bem difícil, né, já que a probabilidade, segundo a própria Caixa Econômica Federal, é de 1 chance em 2,3 milhões, no caso da Loteca (antiga Loteria Esportiva), até 1 em 50 milhões (no prêmio máximo da Mega-Sena). Se acertar a aposta duas vezes é pouco provável, imagine então ganhar 221 vezes na loteria. Sim, esse “sortudo” existiu: o já falecido ex-deputado federal João Alves confirmou tal façanha, em depoimento em 1993.
Obviamente não foi sorte. Ele fazia parte do grupo de políticos que ficou conhecido como “Anões do Orçamento”, um escândalo político que ocorreu no Brasil na década de 1990 e que gerou grave crise política, com investigações, processos e prisões de um grupo de deputados federais.
Como noticiou a Rádio Eldorado, esse grupo, que tinha influência sobre o orçamento do País, manipulava emendas parlamentares com o objetivo de desviar dinheiro público através de entidades sociais fantasmas ou com a ajuda de empreiteiras. Os recursos eram direcionados também para determinados projetos em troca de propinas e favores pessoais. Tais projetos, em sua maioria, nunca foram realizados ou beneficiaram somente os políticos envolvidos.
João Alves era o líder desse esquema de corrupção, conforme concluiu a CPI do Orçamento. Em depoimento, ele creditou à bondade divina pela sua sorte: “Deus me ajudou, e eu ganhei dinheiro”, cujo áudio está disponível no site da Rádio Eldorado. Entretanto, conforme a CPI, ele apostava milhares de dólares (obtidos ilegalmente) em cada sorteio, ganhando vários prêmios – segundo as investigações, o deputado na verdade ganhou, ao todo, 24 mil vezes na Sena, Loto e Loteca, de 1988 até início dos anos 1990. Apesar de perder mais do que ganhava, conseguiu “limpar” parte do dinheiro ilícito.
Arriscar o dinheiro sujo nas apostas, como concluiu a CPI do Orçamento no caso do parlamentar, é uma das formas de usar casas lotéricas como “lavanderia”. Há outras. Uma delas, que também pode ter sido utilizada por João Alves, é bem conhecida do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Em 2003, o Coaf descobriu um esquema, envolvendo pelo menos 30 pessoas que ganharam 1.802 vezes em diferentes loterias da Caixa, com prêmios que somaram R$ 13,9 milhões, pagos principalmente entre 1999 e 2000.
Conforme descrito em artigo na Revista Época, esse grupo comprava bilhetes premiados dos reais apostadores. “Merece destaque o desempenho de José Eugênio da Silva. Ele alega ter ganhado 211 prêmios de loteria em dez meses, entre 17 de novembro de 1999 e 14 de setembro de 2000. Sozinho, levou R$ 1,9 milhão”, destaca a Época.
Você deve estar se perguntando: Quem venderia seu bilhete premiado? A resposta é: Aquele que aceita receber um valor ainda maior do que o prêmio a que teria direito pelo sorteio.
É exatamente assim: o lavador oferece à pessoa em posse de um bilhete premiado um valor um pouco maior do que o prêmio. Dessa forma, o criminoso limpa o montante ao sacar o bilhete na Caixa Econômica Federal, a qual paga o prêmio ao portador do bilhete premiado. Ou seja, quem vendeu embolsou um dinheiro sujo e, de legalmente sortudo, passa a ser um contraventor. É bom lembrar que dinheiro sujo é proveniente de alguma ação ilícita e, depois de limpo, pode inclusive alimentar algum crime, como o de financiamento ao terrorismo.
Não há desculpa, porque as intenções ilegais num caso assim estão explícitas: afinal, quem pagaria mais por um prêmio que será recebido? Boa coisa, por certo, não é.
Porém, por trás dessa história, tem algo que não foi explicado: Como o grupo de criminosos descoberto identificava as pessoas que foram sorteadas? Qualquer pessoa pode comprar um bilhete de loteria, sem ter que se identificar. Só é necessário se identificar com RG e CPF, inclusive assinando no verso do bilhete, quando vai receber o prêmio na Caixa. E o esquema criminoso começa antes disso.
Aliás, foi por essa identificação que o Coaf chegou ao grupo, ao receber a comunicação de suspeita da Caixa Econômica Federal, ao perceber a grande quantidade de prêmios em nome de cada uma dessas 30 pessoas – algumas delas até com o mesmo sobrenome. Por exemplo, Amauri Gouveia, Alécio Pedro Gouveia e Adilson Gouveia, que ganharam, respectivamente, R$ 1,43 milhão em 189 prêmios, R$ 1,42 milhão em 179 prêmios, e R$ 916 mil em 157 prêmios. Os três são irmãos.
Como dito no início deste post, a casa lotérica é suscetível à lavagem de dinheiro nas operações bancárias, mesmo que seja em menor grau, por geralmente ter uma limitação de valores e de transações, comparativamente a um grande banco. Porém, há casos em que criminosos são os próprios donos da casa lotérica, com o objetivo principal de lavar o seu dinheiro sujo.
Casos assim foram desvendados nos últimos anos. Vários deles em Pernambuco. Como a desarticulação de um grupo suspeito de usar casas lotéricas de políticos para "lavar dinheiro" de desvios de verba pública e de corrupção, em 2020, segundo a CBN Caruaru; ou a investigação de uma lotérica em João Alfredo, da esposa de um vereador da cidade, que teria ligação com tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, em 2022, conforme publicou a Folha de Pernambuco.
Mais recentemente, em dezembro de 2023, o G1 descreveu mais uma operação contra lavagem de dinheiro, em Recife, Olinda e Igarassu, também com o envolvimento de casas lotéricas, entre outros tipos de comércio.
A prevalência de crimes de lavagem de dinheiro associados aos bilhetes de loteria e às casas lotéricas expõe uma faceta sombria do mundo dos jogos de azar. Embora as casas lotéricas desempenhem um papel importante como prestadoras de serviços financeiros, a natureza diversificada de suas operações as tornam vulneráveis à exploração por parte de criminosos.
A história de indivíduos como o ex-deputado João Alves e os esquemas descobertos pelo Coaf ilustram vividamente como esses locais podem ser utilizados como ferramentas para lavar dinheiro ilícito. É crucial que as empresas estejam atentas e adotem medidas proativas para detectar e relatar atividades suspeitas, em conformidade com as regulamentações de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (PLD-FT).
A Regcheq oferece uma solução tecnológica avançada para auxiliar nesse processo, capacitando as empresas a identificar e mitigar os riscos associados a transações financeiras suspeitas. Ao automatizar procedimentos e fornecer insights acionáveis, a Regcheq desempenha um papel fundamental na proteção da integridade do sistema financeiro e na preservação da reputação das organizações em meio a um ambiente cada vez mais complexo e regulamentado.